sábado, 6 de março de 2010
Um dicionário para o feminismo
Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
“Os movimentos de mulheres continuam acontecendo. As mulheres permanecem buscando mais qualidade de vida, igualdade entre os gêneros, acesso aos direitos mais fundamentais, o fim da violência e muito mais”. É com essas premissas que a socióloga Helena Hirata justifica a atualidade e a pertinência do livro que organizou, em parceria com três pesquisadoras francesas. O Dicionário crítico do feminismo, lançado em dezembro último pela Editora Unesp (341 pags. e R$ 55,00), apresenta 50 verbetes ligados ao tema, como aborto, emancipação, violência doméstica, direitos das mulheres, religião e feminismo – todos desenvolvidos e escritos por alguns dos maiores especialistas (como filósofos, sociólogos e educadores) em questões de gênero na França. “Além de oferecer uma conceituação profunda, apesar de concisa, cada rubrica oferece ainda reflexões e discussões relevantes para cada área. Assim, o leitor conhece não só o assunto, mas o pensamento mais aprofundado que é formulado a respeito dele”, explica Helena, que é brasileira, mas mora na França há 40 anos, trabalhando como pesquisadora no Centro Nacional de Pesquisa Científica daquele país, o CNRS, na sigla em francês.
Desde o final do ano passado, a autora está no Brasil como professora convidada do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), ministrando um curso na pós-graduação e divulgando o dicionário por várias cidades do Brasil. Helena lembra que, inspiradas por obras similares, como o Dicionário crítico de trabalho e tecnologia, de Antonio Cattani (Editora UFRGS), ela e as outras autoras – Françoise Laborie, Hélène Le Doaré e Danièle Senotier – perceberam que não havia nenhum dicionário a respeito do feminismo na França. Começaram então a amadurecer a ideia e a organizar o projeto. O passo seguinte foi encontrar pesquisadores capazes de desenvolver com consistência e propriedade os diferentes verbetes – e assim concluíram o livro.
Questões universais
Com o convite para a brasileira permanecer um ano aqui no país, as autoras decidiram produzir uma versão do dicionário em português, para atender às necessidades específicas do público brasileiro que, até então, também não contava com iniciativa semelhante. “Não foi possível abrasileirar todos os verbetes, ou reescrevê-los à luz da experiência brasileira, por falta de tempo mesmo. Então o que fizemos foi acrescentar parágrafos e notas em algumas rubricas”, explica Helena. Apesar de ter essa peculiaridade, o dicionário não é inadequado à nossa realidade, porque trata de temas universais, ainda mais em uma sociedade globalizada, como destaca a autora. “Assédio, violência doméstica, lesbianismo, condição de trabalho e todos os outros assuntos tratados lidam com situações e dilemas que cabem na realidade de todos os países”. Além disso, as organizadoras tiveram o cuidado de citar as obras em português publicadas pelos autores dos verbetes e, ainda, aproveitaram para convidar uma socióloga brasileira para escrever a respeito de religião e gênero. “Maria José Rosado, a Zeca, é professora da Pontifícia Universidade Católica, a PUC de São Paulo, e militante do direito das mulheres católicas de decidir sua vida. Ela é a maior especialista do mundo nesse tema e, mesmo antes de querermos lançar o livro aqui, a Zeca já tinha sido convidada. Não deixa de ser um olhar mais brasileiro para o feminismo”, completa Helena.
O que talvez mais chame a atenção no Dicionário crítico do feminismo não são apenas as definições e os conceitos, sempre importantes, mas a apresentação das várias linhas de pensamento e a reflexão crítica que se estabelece a respeito de cada tema. A ideia das autoras era, além de oferecer os conceitos, atualizar o leitor para as discussões travadas sobre assuntos como prostituição, diferença entre os gêneros, condição de trabalho e jornada dupla, dentre outros. De acordo com Helena, não é mesmo muito comum encontrar dicionários críticos, e a vantagem desse – ainda segundo a autora – é que a linguagem usada é acessível e fácil de ser compreendida tanto por pesquisadores do feminismo como pelo público mais amplo e não-especializado na área. “A gente pensou muito nos professores dos vários níveis. Tem lá o verbete educação e socialização, que discorre por exemplo sobre as principais correntes da educação hoje. Ou seja, quem está interessado em educar, tem um capítulo inteiro à disposição”. Ao comentar uma possível parcialidade nas escolhas feitas pelos autores de cada rubrica, a professora explica que o dicionário não procura apresentar uma receita pronta e uma reposta cabal para cada tema. A ideia é, justamente, levantar as discussões, estimular o debate e mostrar o estágio atual da questão e assim oferecer uma base sólida de reflexão crítica para o leitor. “Caso ele se identifique com uma ou outra Escola de pensamento, ou queira se aprofundar, basta procurar as obras em português dos 50 pesquisadores que escreveram os capítulos”, sugere Helena. Aliás, um dos objetivos das autoras é que o dicionário sirva de base, de ponto inicial para outros estudos mais focados e com olhares mais brasileiros a respeito da situação da mulher.
Dia da Mulher, uma data a ser comemorada
Pensando exatamente nessa situação, Helena acredita que o Dia Internacional da Mulher é sim uma data para ser comemorada. Para ela, os avanços foram muitos em relação à autonomia das mulheres, à inserção delas no mercado de trabalho, a relação com os homens. Contudo, destaca, também deve fazer parte da agenda de 8 de março refletir, discutir e propor novas posições e iniciativas para tornar a condição feminina mais igualitária, na diferença. “Ainda existem pontos bem negativos na situação da mulher. O salário continua menor que o dos homens, mesmo que eles ocupem o mesmo cargo. No mundo inteiro as mulheres têm mais escolaridade, mas continuam ganhando menos”, provoca a socióloga. Para ela, a divisão sexual não está só no trabalho, também permanece nas esferas do saber. Ainda existem poucas reitoras de universidades, mulheres pesquisadoras e professoras honoris causa. Nas instâncias de poder e decisão, elas são minoria ainda mais pronunciada: é desigual o número de executivos e executivas, chefes homens e chefes mulheres, sindicalistas homens e mulheres. Ou seja, ainda há muito para o que lutar.
E é aí que entram os movimentos feministas, segundo a autora. Parcela significativa dos avanços conquistados pelas mulheres deve-se certamente à atuação desses movimentos que, ao contrário do que se pode imaginar, não acabou com as mulheres queimando soutiens em praça pública no final da década de 1960, nem com a liberação sexual, nem com a aprovação da Lei do Divórcio no Brasil (final da década de 1970). “As organizações continuam trabalhando, talvez aqui no Brasil de maneira mais pulverizada e com focos bem diversos, mas são bastante atuantes. A lei contra a violência doméstica [Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006 e aumentou o rigor das punições para agressão contra a mulher] é um bom exemplo”, afirma Helena. E para finalizar, a socióloga do CNRS sugere que o leitor comece a desvendar o dicionário pelo verbete diferença entre os sexos. Ali, além de encontrar um conceito sólido sobre o que é o feminismo, ele vai travar contato com a essência dos diferentes movimentos feministas em atuação hoje. Vai ter, portanto, uma visão bem equilibrada sobre teoria e prática dos movimentos e poderá assim refletir sobre todos os outros assuntos ligados ao feminismo – inclusive a comemoração do Dia Internacional da Mulher – a partir de uma perspectiva original e mais sustentada.
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